20 dez de 2015
Bahia – O drama dos brigadistas na pior temporada de incêndio da Chapada Diamantina

A luta dos voluntários que enfrentam o fogo e a falta de estrutura na Bahia. Os incêndios já duram mais de 40 dias. A tragédia só não foi maior graças ao trabalho invisível dos brigadistas

Jânio Souza Rocha cresceu respirando a Chapada Diamantina.Filho de garimpeiro, deixou a labuta ao lado do pai em 1997, quando o garimpo na região foi oficialmente proibido, e escolheu proteger a floresta. Entrou para o primeiro grupo de brigadistas voluntários da Chapada, num curso feito pelo Ibama. Em 2003, entrou para o único e último time de quarenta brigadistas remunerados. Para quem cuida da Chapada como Rocha, amar a floresta é imprescindível para lutar por ela. A remuneração, ele diz, atraiu interessados apenas no dinheiro. Numa das muitas discussões sobre quem deveria ou não ser brigadista contratado, Rocha abdicou do trabalho remunerado e montou, com a mulher Marta de Oliveira Ferreira e amigos, a Brigada de Resgate Ambiental deLençóis (BRAL). Por isso, quando fala da mata, a voz rouca – fruto de anos enfrentando o fogo sem máscara de proteção- embarga, como quem fala de uma pessoa querida. É que a Chapada de Rocha está gravemente doente.

Como acontece há mais de vinte anos, Rocha – conhecido como ‘Feijão’- recebeu uma mensagem curta no celular em meados de outubro: incêndio na Chapada. O fogo que começou fora do parque nacional atravessou a estrada e encontrou grama verde e seca. Instantes depois, outra mensagem, e mais um foco de incêndio. PeloWhatsapp, que vez ou outra não funciona pelo sinal fraco da internet, Rocha disparou pedidos de ajuda para os outros quinze voluntários da BRAL, gente que nasceu na Bahia ou em outros cantos do país, com ou sem formação na área ambiental. Gente que tem muito de Alberto Caeiro, heterônimo de poeta e escritor Fernando Pessoa, que comunga de um amor desmesurado pela natureza. Como é o caso de Daniel Moreira Sales, brigadista há doze anos, incapaz de conter a emoção ao falar da floresta. “Todo  mundo aqui tem o mesmo objetivo, que é cuidar da Chapada. E o contraste depois de um incêndio é chocante. Onde morava vida não tem mais nada”, diz.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

A cidade de Lençóis, considerada Patrimônio Histórico da Humanidade, é a porta da Chapada Diamantina, um roteiro de turismo ecológico de 152 mil hectares, criado em 1985, que atravessa vinte e quatro municípios – sete deles na Bahia. Ali nasce o Paraguaçu, o maior rio do estado. Lá estão 80% dos recursos hídricosda Bahia. Do alto do Morro do Pai Inácio, um dos atrativos da região, é inerente o encantamento diante duma Chapada montanhosa, verde e viva. De lá, era possível assistir o primeiro foco do incêndio. O que ninguém imaginou era que o fogo ficaria incontrolável, e que destruiria 51 mil hectares da Chapada.

Naquele dia, Rocha andou poucos passos até a sede da BRAL, instalada às pressas num puxadinho nos fundos do quintal da casa dele depois que a prefeitura anunciou que não arcaria com R$ 200 do aluguel – dum total de R$ 450-, em janeiro deste ano. A reportagem não conseguiu encontrar o secretário de Meio Ambiente. Ali, o grupo se reuniu. Dividiram-se em dois grupos. O roteiro  foi o mesmo usado durante tantos outros combates. Primeiro, vestiram roupas e sapatos que lembram equipamentos antichamas, mas que na verdade são vestes e produtos que não protegem como os dos bombeiros. Tudo veio por doação de moradores ou pessoas sensíveis à causa. As botas que eles usam são como as de segurança de shopping. “Elas aquecem tanto que a sensação é que vão derreter durante o combate”, diz Itamar Gomes, guia da Chapada. Há poucas máscaras. Usá-las torna o calor ainda mais insuportável. Então, eles protegem o rosto com uma camiseta. Na cabeça, amarram luminárias de led. Nas costas, carregam equipamentos de mais de vinte quilos para conter o fogo. Nas mãos, levam coragem e foices para abrir caminho na mata à noite. O período noturno não é uma escolha, é a única opção para voluntários, que precisam lutar contra o calor de Lençóis, em torno de 40ºC (durante o dia), em caminhadas de até dez horas, entre desfiladeiros e fendas. Perto das chamas, a temperatura dobra.  

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

Pouco são os documentos oficiais que falam do papel das brigadas voluntárias. Na Bahia, são as menos duas em cada um dos municípios cortados pela Chapada, segundo o Ministério Público estadual. Por se tratar um Parque Nacional, a proteção ambiental é atribuição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). As demais são do Ibama e a Secretaria do Meio Ambiente. Em tese, os integrantes deveriam receber treinamento de combate ao fogo e monitoramento de focos de incêndio para dar apoio às instituições, como o Corpo de Bombeiros.A última ajuda que a BRAL recebeu do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), dizem os brigadistas, foi em 2008, ano do maior incêndio que já consumiu a Chapada. “Vieram quinze botas de segurança e macacões antichamas, mas de baixa qualidade”, diz Rocha. Nenhum dos institutos retornou os pedidos de entrevista da reportagem.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

Na prática, na Bahia os brigadistas fazem o combate ao fogo em razão da negligência do Estado e da União, como mostrou o inquérito aberto em novembro pelos Ministérios Públicos Estadual e Federal. O promotor de Justiça regional ambiental Augusto César Matos, contou, com exclusividade à Época, que o incêndio que devastou quase 500 hectares de Mata Atlântica na Chapada, dos seis mil existentes, foi o estopim para a investigação do MP começar. “Eram áreas prioritárias de preservação, mas nem isso levou os governos a disponibilizarem um aparato maior para conter o incêndio.” Por isso, Augusto diz que é o pior incêndio que a Chapada já sentiu. A promotoria já confirmou que os governos subdimensionaram o tamanho do incêndio, não tinham plano para combatê-lo nem projetos de prevenção contra o fogo. A ajuda dos bombeiros com helicópteros, por exemplo, chegou semanas depois do incêndio começar. O MP apurou que não havia um plano para manejar e resgatar animais – os brigadistas da BRAL salvaram uma coruja queimada parcialmente pelo fogo.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

As brigadas, aliás, são citadas no inquérito pelo combate ininterrupto ao fogo como “a maior força humana” contra os incêndios. Dados públicos mostram que, assim como o Natal e o Ano Novo, incêndios são eventos com data marcada no calendário baiano. Junto do procurador da República Márcio Albuquerque de Castro, o promotor Matos está tentando entender porque os governos foram tão letárgicos se estavam conscientes do risco iminente. Para apagar o fogo, literalmente, já foram gastos R$ 8,6 milhões, na maior operação feita pelo estado da Bahia. O secretário do Meio Ambiente, Eugênio Spengler, diz que seis aviões e cinco helicópetros foram alocados para combater o incêndio na Chapada. “O ICMBio quase não atuou”, diz. Por decreto de emergência, 550 kits de combate ao incêndio serão comprados e distribuídos às brigadas. “Admito que houve atraso na compra de material. Se tivéssemos isso antes, mais gente poderia ter ajudado”, diz.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

O ano de 2015 pode entrar para a história da Bahia como o período com mais focos de incêndio desde 1998, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a fazer a medição. Dados obtidos com exclusividade por Época mostram que a diferença entre 2015  e 2007 – o ano que lidera o ranking das chamas-, é de menos de dois mil focos. “E ainda faltam duas semanas para acabar o ano“, diz o pesquisador do programa de monitoramento de queimadas do Inpe, Fabiano Morelli. Os focos de incêndio detectados cresceram 130% entre janeiro a 15 de dezembro de 2015 em relação ao mesmo período do ano passado. No primeiro semestre, todos os meses apresentaram focos acima da média. Em setembro, outubro e novembro os focos foram superiores às médias histórias.

A escassez de chuva e as altas temperaturas facilitam as ocorrências de focos de incêndio, mas não são os vilões dessa história. Mais de 90% dos incêndios são provocados pelo homem, intencionalmente ou não. O fogo pode começar por um morador ou um turista que faz uma fogueira e não apaga direito; gente interessada em fazer pastagens ou renovar a grama rapidamente; conflito entre vizinhos; moradores de áreas de proteção ambiental que receberam ou não indenização para deixar a terra e colocam fogo para ninguém tirar proveito e etc. “Diante desse cenário, qualquer pequeno fogo caminha para um grande incêndio”, diz Morelli.

Dos degraus da frente da casa de Rocha, os voluntários assistiram a Chapada ser queimada brutalmente, sem o socorro merecido. Sob o comando de Marta, mulher de Rocha, outros trabalham para manter a alimentação diária dos pelo  menos cem voluntários. Numa das raras ocasiões em que falava ao telefone da reportagem, ouve-se uma comemoração, que chegou em forma de bolo de chocolate – com cobertura, alguém gritou- pelas mãos de uma vizinha. Para alguns, a casa de Rocha serviu também de abrigo. Quem não encontrou espaço dentro do imóvel pernoitou, em sacos de dormir, sob o céu estrelado no quintal.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

Das 914 áreas de conservação do ICMBio, Funai e Ibama, 130 estavam, até o fechamento desta edição, com focos de incêndios. Apenas 164 do total de áreas de conservação possuem brigadistas. “E o dado mais alarmante é que são brigadistas temporários, contratados por seis meses quando o risco de incêndio cresce”, diz Morelli, do Inpe. Com apoio da população de Lençóis, a BRAL colocou na serra diariamente mais de 50 brigadistas, todos voluntários. Isso foi mais do que todos os brigadistas contratados do ICMBio, que eram 42. Para a advogada Helena Regina da Costa. do escritório CAZ advogados, relaciona a falta de brigadistas à ausência de punições. “Se você não tem um combate efetivo ao fogo, provavelmente você não tem polícia investigando. E a educação e a prevenção não são efetivas”, diz. Segundo o MP, nunca ninguém foi condenado por crime correlato ao fogo na Bahia. O MP apurou ainda que o governo da Bahia não destacou um delegado da polícia civil regional para trabalhar dentro do parque, como prevê a lei.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

A casa de Rocha serviu como base de operações para moradores da região, turistas que estavam na Chapada e enfrentaram o fogo e até pessoas de outros estados que, sensibilizados com o avanço das chamas, viajaram para participar do combate. Esse incêndio foi a estreia de Osvaldo Dias Vilela Neto, morador de Lençóis. Por nove horas, combateu o fogo no grupo dos ‘focas’, em ilusão à inexperiência dos integrantes. “Alguns meninos deitavam no mato, tamanho o cansaço”, diz. Vilela voltou para casa com os primeiros raios da manhã. Então, acordou a mulher para contar o que viveu. Disse que um quilômetro antes de chegar ao foco do incêndio era possível sentir o calor do fogo e a fumaça. “Não sei se foi a emoção de estar ali, ajudando a defender a floresta, mas senti uma arrepio percorrer o corpo e as lágrimas começaram a escorrer”, diz. Já Neto de Oliveira, que atualmente mora no Rio de Janeiro, comprou passagens para a Bahia para ajudar no socorro. Oliveira trabalha com esportes radicais e já viveu na Chapada. Na época, tinha um jipe. Usava o veículo levar os combatentes. Dessa vez, ele foi para o fogo.Com entusiasmo, ele fala sobre a energia que absorveu dos brigadistas. “Eles não estão ali por obrigação nem tem horário para ir embora. Eles só saem de lá quando o fogo acaba”, diz. Desde que a BRAL foi fundada, dois voluntários morreram em combate.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

A mudança que o fogo provoca não se restringe à vegetação. Quando uma área queima, tudo o que está vivo esfarela. A lista de danos ao meio ambiente do engenheiro florestal da brigada Diego Serrano é imensa. Primeiro ele fala de filhotes de animais, maioria das vítimas fatais do incêndio. Depois, da perda de solo orgânico (tufa), que regula a vazão dos rios, evitando enxurradas. Espécies importantes da vegetação perderam espaço para espécies oportunistas e invasoras. Fora a emissão de gás carbônico, que já ultrapassou 250 mil toneladas dentro do Paque Nacional, dias depois do COP 21, em Paris. A avaliação dos brigadistas é que a situação da Chapada seria muito pior se não tivessem recebido apoio de instituições, como o Corpo de Bombeiros,com equipamentos e aeronaves.

Janio Souza Rocha (o Feijão), que fundou uma brigada voluntária em Lençóis,Bahia (Foto: Rui Rezende/Decorarcomfoto/ÉPOCA)

Até a semana passada, a conta dos dias de batalha de Rocha contra o fogo passavam dos quarenta – mesmo tempo que ele, a mulher e os demais brigadistas abandonaram seus respectivos trabalhos para combater o fogo. Nem as queimaduras e os machucados nas mãos, nem os olhos avermelhados nem a rouquidão constante pela inalação da fumaça incomodam o brigadista. Rocha não se importa com os danos provocados pelo fogo ao próprio corpo, mas não esconde o medo do que os vinte anos inalando fumaça provocaram nos pulmões. “Prefiro morrer a saber o que já aconteceu”, diz. Que a casa de Rocha volta ser ponto para receber turistas, e não mais um centro de operação por socorro.

Fonte: epoca.globo
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