22 maio de 2018
Brasil – Agricultura – Agricultura Irrigada

A água é um recurso natural finito, ou seja, ela pode acabar caso  seja utilizada sem racionalidade, sem preservação nem conservação. Isso precisa ser mais bem compreendido pela sociedade brasileira. Afinal, necessitamos de água para  abastecimento urbano e industrial, prestação de serviços, mineração, lazer, navegação, geração de energia, agricultura, entre outros usos. Nesta década atual, temos visto algumas situações de falta de água no Brasil, que têm surpreendido a população. Entre 2014 e 2016, grandes reservatórios de água em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro apresentaram elevadas reduções em seus níveis, preocupando a todos. Em Goiás, as chuvas apresentam uma menor ocorrência desde 2014, e em 2017 a região metropolitana de Goiânia passa por racionamento de água. O mesmo acontece no Distrito Federal. No Nordeste, especificamente no Semiárido, a seca atual se iniciou em algumas áreas em 2010, e alcançou uma maior extensão a partir do ano seguinte. No Ceará, considerado o estado do Nordeste com a maior segurança hídrica (infraestrutura para armazenamento e distribuição de água), a irrigação em áreas agrícolas foi reduzida desde 2014, e chegou a ser interrompida em outras a partir de 2015, por falta de água.

 

Essas situações de redução de oferta de água para diversos setores da sociedade brasileira têm levado muitas pessoas a considerar a agricultura irrigada como um dos fatores responsáveis por tais fatos. É inegável que o volume de água utilizado por essa atividade econômica é elevado, porém a discussão sobre a prática da irrigação não está correta. O entendimento incompleto do uso da água no contexto da agricultura irrigada e de seus benefícios à sociedade tem provocado manifestações veementemente contrárias à irrigação, com a alegação de que outros setores usuários estão sendo prejudicados por essa prática agrícola.

 

Na irrigação de uma lavoura, parte da água aplicada é retida pelo solo e é absorvida pelas plantas, e parte drena pelo interior do solo, alimentando o lençol freático. Em algumas situações, a água pode escorrer pela superfície do solo. De toda a água absorvida pelas plantas, parte se torna constituinte do tecido vegetal e grande parte é devolvida à atmosfera pelo processo de transpiração que ocorre nas folhas e pela  evaporação da água presente nas camadas superficiais do solo, por causa da incidência de raios solares. Esses caminhos percorridos pela água aplicada pela irrigação em uma cultura agrícola fazem parte do chamado ciclo hidrológico, objeto de estudo no ensino fundamental, e de forma mais aprofundada no ensino superior aos profissionais ligados às Ciências Agrárias. Deve ser lembrado também que, em muitas situações, a agricultura irrigada “devolve`” a água para a natureza com a qualidade muito melhor que a de outros usuários. Portanto, faz-se necessário o estabelecimento de um diálogo entre os tomadores de decisão de todos os setores usuários de água envolvidos, com as devidas ponderações, de modo sereno. Falta  esclarecimento sobre a agricultura irrigada à sociedade.

 

A agricultura brasileira, que teve um avanço marcante a partir da década de 1980, tem propiciado uma significativa contribuição ao produto interno bruto, ao aumento da oferta interna de alimentos e à redução de seus preços, e a uma maior geração de empregos diretos e indiretos. Hoje, temos também o reconhecimento mundial de nossa capacidade em produzir biomassa para alimentação humana e animal, geração de energia e processamento industrial para o mundo, que espera nossa contribuição para superar o desafio global de alimentar 9 bilhões de pessoas em 2050.

No Nordeste do Brasil, grande parte da população economicamente ativa está presente na agricultura. Em sua região semiárida, a irrigação é indispensável para que a agricultura possa ser praticada com maior garantia de obtenção de colheita. Utilizar a irrigação de modo sustentável nessa região significa tentar aproveitar o seu potencial de produção agrícola, caracterizado principalmente pela elevada disponibilidade de radiação solar durante todo o ano, sem a qual as plantas não se desenvolvem. A oportunidade de incorporação de pequenos produtores irrigantes à atividade agrícola naquela região contribui não só para aumentar a participação na produção agrícola nacional proveniente da agricultura familiar, mas também para a redução da pobreza e geração de renda. No tocante à participação de empresas agrícolas nas áreas irrigadas do Semiárido, além da considerável produção e exportação de produtos agrícolas (principalmente frutas), devem ser destacados a geração de emprego e o pagamento de impostos. Nos Cerrados, região Centro-Oeste, a agricultura irrigada proporciona o fornecimento de água durante os veranicos e o aumento de produtividade de várias culturas (principalmente grãos), como também contribui para a implantação de agroindústrias, que envolvem insumos, agropecuária, máquinas, indústria e sua distribuição. Na região Sul do Brasil, a produção de arroz irrigado é responsável pela maior parte da oferta desse importante cereal da nossa alimentação. A diminuição da oferta de arroz ao consumidor pode causar elevação de seu preço e, portanto, pode contribuir para o aumento de inflação.

A agricultura irrigada, de maneira geral, pode contribuir para uma elevação da produtividade das lavouras em até 3 vezes, dependendo do local e da cultura agrícola. Todo produtor irrigante pode contribuir com o estabelecimento e fortalecimento de arranjos produtivos locais, o que favorece o aparecimento de polos de desenvolvimento regional. Também podem ser alcançadas maior estabilidade da produção ao longo dos anos (diminui eventuais riscos climáticos, como pouca ou nenhuma chuva), e maior segurança alimentar e nutricional à população brasileira. É oportuno mencionar a quebra de paradigma ocorrida quanto à irrigação em algumas culturas, como o café, citros e pastagem. Alguém pensava em irrigar essas culturas há 20, 30 anos? A irrigação pode ser também uma forte aliada para a implantação da integração lavoura-pecuária-floresta.

 

É importante também analisar a evolução da irrigação no Brasil, o que pode trazer um melhor entendimento sobre esse assunto. Resumidamente, a irrigação teve início na década de 1900 para a produção de arroz no Rio Grande do Sul, e, na década de 1940, foram iniciadas algumas ações do governo federal que promoveram a construção de infraestrutura (reservatórios, canais, sistemas de bombeamento) para irrigação no Semiárido. Posteriormente, e ao longo de várias décadas, foram criados diversos programas governamentais de desenvolvimento de infraestrutura para a irrigação no país. Infelizmente, houve descontinuidade das ações governamentais durante todo esse período. No entanto, a iniciativa privada, a partir da década de 1990, mostrou importante colaboração na incorporação de novas áreas irrigadas. A expectativa é que o setor privado da agricultura brasileira seja o principal ator em prol da agricultura irrigada nos próximos anos, com a devida participação de instituições dos governos federal e estaduais (órgãos regulatórios, universidades e instituições de pesquisa e desenvolvimento, agências de difusão e transferência de tecnologias).

 

A necessidade de melhoria quanto à utilização de água é consenso entre produtores e profissionais diretamente envolvidos com a agricultura irrigada. O emprego de informações meteorológicas vindas de estações instaladas em áreas irrigadas ou fornecidas por órgãos governamentais ou empresas do setor privado, a melhoria na prestação de serviços para a realização do manejo de irrigação, a capacitação dos produtores rurais para manejo dos sistemas de irrigação, a substituição da irrigação por superfície pela localizada em vários perímetros irrigados, a mudança da irrigação por inundação para a irrigação por aspersão em algumas áreas de cultivo de arroz, o melhor aproveitamento das chuvas no período de cultivo do arroz irrigado por inundação, o uso da agricultura de precisão e da automação, a instalação de estrutura moderna e efetiva de gestão da irrigação por meio de tecnologias de informação e conhecimento, entre outras ações, estão contribuindo para diminuição de situações de irrigação excessiva (desperdício de água) em áreas agrícolas. Com essas medidas, que devem ser intensificadas, pode-se também aumentar a produtividade da água, definida pela produção agrícola, rentabilidade e benefício obtidos em relação ao volume de água utilizado em uma área. Cabe ressaltar que independentemente do tamanho da área e do nível de tecnologia que o produtor emprega em sua cultura, todos podem e devem ser mais eficientes quanto ao uso da água. Com boas práticas de manejo, é possível reduzir o volume de água utilizado na irrigação.

 

Alguns paradigmas ainda precisam ser quebrados no tocante à agricultura irrigada. A outorga de água deve regular a utilização desse recurso natural, que é um bem público, e portanto deve ser assegurado a todos os seus usuários. A cobrança pela utilização da água complementa a outorga. Muitos profissionais envolvidos com a agricultura irrigada sugerem que a água para irrigação seja cobrada como um insumo, tendo como base de cálculo o  volume utilizado pela irrigação. Evidentemente, existe elevado número de diferentes situações no Brasil quanto à oferta e demanda de água, o que torna a tomada de decisão quanto a isso muito criteriosa, complexa. Já a reservação de água também ainda precisa ser mais bem apresentada aos gestores tomadores de decisão. Águas represadas a montante podem ter efeitos multiplicadores na agricultura irrigada, inclusive melhorando o fluxo de água a jusante. A reservação feita com critérios pode ajustar a disponibilidade hídrica de um local com a necessidade da agricultura irrigada, levando em conta os usuários a jusante, e contribuir também para a segurança alimentar.

 

O Brasil está entre os dez países com maior área equipada para irrigação, embora apenas uma pequena parte da área potencialmente irrigável seja utilizada. O país tem, em geral, grande disponibilidade de água, mas existe uma grande variação entre as diferentes regiões. A Agência Nacional de Águas (ANA) mostra que a área irrigada do Brasil, em milhões de hectares, foi de 4,6 (2006), 5,4 (2010), 5,8 (2012) 6,1 (2014) e 6,95 (2015). O Censo Agropecuário de 2006 mostra que cana-de-açúcar, arroz, soja, milho, feijão, laranja, café, feijão-caupi, cebola, melancia, algodão e trigo eram as culturas com maiores áreas irrigadas. Estudos apresentam um potencial de expansão para 76,2 (ANA) ou 81 milhões de hectares (Ministério da Integração Nacional, IICA, ESALQ/USP). Tais análises representam uma importante evolução quanto à obtenção de informações detalhadas sobre a agricultura irrigada no Brasil, mas elas devem ter continuidade e ser mais detalhadas. O próximo Censo Agropecuário brasileiro deverá trazer boa contribuição para o conhecimento a ser utilizado para melhorar o uso da irrigação em prol da sociedade.

 

Por sua vez, a baixa capacidade do agricultor em gerenciar sistemas de produção irrigados, a dificuldade na obtenção de financiamento, a pequena difusão e transferência de tecnologia ao agricultor irrigante, a pequena assistência técnica específica para a agricultura irrigada, o custo e a falta (em algumas regiões) de energia elétrica, a baixa organização dos produtores, a estruturação e articulação de cadeias produtivas, e políticas públicas pouco efetivas são mencionadas por muitos como algumas das possíveis causas pela relativamente pequena área irrigada existente no Brasil. Esses aspectos devem ser considerados para o futuro desenvolvimento desse setor da agricultura brasileira.

 

Apesar de existirem várias abordagens relacionadas à agricultura irrigada, uma não é feita por parte da sociedade, quando se manifesta contrária à irrigação: “e se não irrigar, o que acontece” ? O que seria da produção de frutas no Nordeste, de grãos no Centro-Oeste, e do arroz no Sul ? Para sermos autossuficientes em produção de trigo (somos um dos maiores importadores de trigo no mundo!), a irrigação dessa cultura é um dos caminhos que podem levar o país a não mais importar esse grão. Assim, sem a agricultura irrigada, são previstos cenários como a diminuição da otimização da produção agrícola, com menores produtividade e qualidade do produto e menor número de safras por ano, bem como o aumento da insegurança contra veranicos e secas, o que pode diminuir o cultivo de altos custos. Também podem ser reduzidas a competitividade da agricultura e a geração de renda e empregos, com possibilidade de aumento do êxodo rural.

 

A agricultura irrigada pode causar impactos no meio ambiente, como qualquer outra atividade exercida pelo homem. Os “confrontos” existentes entre os setores usuários de água exigem diálogo, planejamento e gestão. Ao mesmo tempo, a agricultura irrigada necessita de melhor organização e representatividade, em aspectos técnicos, de políticas públicas e de esclarecimento à sociedade. Afinal, para haver segurança alimentar e do alimento, precisa haver água, e a agricultura irrigada pode contribuir para isso e para um desenvolvimento socioeconômico sustentável para o Brasil.

Autor: Luís Henrique Bassoi

Fonte: Embrapa, Série Olhares para 2030

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

Engenheiro agrônomo (ESALQ / USP). Mestre em Agronomia / Irrigação e Drenagem (FCA / UNESP). Doutor em Ciências / Energia Nuclear na Agricultura (CENA / USP). Pós-Doutorado no Hydrology Program (University of California, Davis, USA). Entre dezembro de 1994 e abril de 2015, foi pesquisador da Embrapa Semiárido em Petrolina, PE. A partir de maio de 2015, é pesquisador na Embrapa Instrumentação, em São Carlos, SP. Membro do corpo docente e orientador do Programa de Pós-Graduação em Agronomia (Irrigação e Drenagem) da FCA/ UNESP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Desenvolve trabalhos de pesquisa e desenvolvimento em física do solo, manejo de irrigação, fertirrigação, uso da água na agricultura e agricultura de precisão, inclusive em parceria com produtores agrícolas. Na Embrapa, participa do Grupo Gestor do Portfólio Agricultura Irrigada e das redes de pesquisa Agricultura de Precisão e AgroHidro. Entre 2005 e 2008, foi o coordenador da Bacia do São Francisco junto ao Challenge Program Water and Food, do CGIAR. Em parceria com unidades da Embrapa e outras instituições, participa dos Grupos de Pesquisa Vitivinicultura de Precisão, Agricultura de Precisão no Semiárido Brasileiro, Engenharia da Irrigação do Vale do São Francisco, Núcleos de Estudos em Engenharia de Biossistemas na Produção Agrícola, e Grupo de Estudos e Pesquisas Agrárias Georreferenciadas.

Texto originalmente publicado em:
Série Olhares para 2030
Autor: Luís Henrique Bassoi
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