10 jul de 2016
Barreiras – ‘Disputa por água no Oeste da Bahia poder acabar em guerra civil’, diz especialista

O professor Altair Sales Barbosa tem sido a mais persistente voz em defesa do Cerrado. Ele é reconhecido como uma das maiores autoridades científicas no estudo do bioma. Em entrevista ao Jornal Opção, de Goiás, Sales denuncia que a disputa por água no Oeste da Bahia entre população local e multinacionais do agronegócio poderá gerar situação de guerra civil. O especialista alerta, ainda, sobre a irreversibilidade da destruição do Cerrado e as graves consequências que isso já está gerando. Uma delas é a aguda redução dos mananciais e reservatórios de água. “O desmatamento do Cerrado e sua ‘troca’ por áreas de cultivo de monoculturas e pastagens são fatores que podem até momentaneamente favorecer a economia e aumentar o PIB nacional, mas é como matar a galinha dos ovos de ouro”, comentou.

Entrevista na íntegra:

Elder Dias — O sr. escreveu, em um artigo para o Jornal Opção, que o Oeste da Bahia está passando por um processo que se configura como um conflito à beira de uma guerra civil. É isso mesmo?

Sim, vamos às explicações. A região Oeste da Bahia, a partir de 1970, vem sendo ocupada de forma indiscriminada por grandes empresas multinacionais. É preciso, antes, uma explicação sobre essa área, que compreende, além do Oeste da Bahia, também o Oeste de Minas, parte do Piauí e parte do Maranhão. Essa região é coberta por uma bacia de sedimentação, a que chamamos de bacia intracratônica, que, por ser arenosa, tem rocha porosa. Esse tipo de rocha retém a água que forma os aquíferos. A água, primeiramente, é depositada no lençol freático, que, uma vez saturado, a faz se infiltrar nas rochas porosas e se deposita nos aquíferos. Então, essa área antigamente tinha grande abundância de água e era alimentadora do Rio São Francisco, que na verdade só existe por causa dos pequenos rios do Oeste de Minas e da Bahia.

Mas era uma área ocupada por Cerrado, de solo muito pobre, oligotrófico, com grande grau de acidez e falta de nutrientes básicos para desenvolver uma série de cultígenos [produtos cultiváveis]. A partir de 1970, o grande capital internacional — principalmente as multinacionais — descobriu essa região, e aliado ao governo da ditadura militar da época, financiou a pesquisa no Brasil, gerando empresas nacionais de pesquisa, dentre elas a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e outras que foram se instalando nos Estados, como a Emgopa e Emater [empresas estaduais goianas de pesquisa e extensão agropecuária].

O objetivo dessas empresas era desenvolver tecnologia para que aquele solo ruim do cerrado pudesse ser aproveitado para a produção de commodities em larga escala, tanto de vegetais como com a criação de determinadas raças especializadas de gado. Isso foi possível e tem um lado positivo: o brasileiro é inteligente e, quando se investe na pesquisa produtiva, ele dá respostas animadoras. As empresas de pesquisa tiveram sucesso. Aquele solo impróprio pôde efetivamente ser aproveitado para cultivo e criação de gado em larga escala. Foi criada tecnologia para isso, usando o calcário para correção do solo, adubos e equipamentos mecânicos para desmatamento de grandes áreas. Como o Cerrado é uma área plana, isso se tornou muito fácil. A partir daí, dentro de uma política nacional, o bioma passou a ser considerado uma fronteira de expansão econômica e sua área passou a ser ocupada de forma intensa cada vez mais.

Marcos Nunes Carreiro — E qual foi o problema específico daquela região do Cerrado no Oeste da Bahia?

O problema é que havia ali terras devolutas, posseiros, comunidades indígenas, área de quilombos e até moradores de descendência europeia — diz-se que imigrantes da Romênia vieram colonizar a área do Rio do Meio, se perderam por ali e se fixaram nas cabeceiras desse rio, estabelecendo povoados.

Na Bahia, essa área pertencia a um grande município, Correntina, que depois foi dividido, e que abrigava todos esses rios. Paulatinamente, as grandes empresas foram se instalando no local. Ocorre que, para obter um grande nível de produtividade agrícola, era preciso também grande quantidade de água, o que era fornecido de forma suficiente pelos rios da região, uma vez que o aquífero que os alimentava estava cheio. O aquífero era devidamente alimentado pelas chuvas, já que estava preservada a vegetação nativa que suga a água da chuva. Com o desmatamento crescente em larga escala na região, que devastou totalmente o Cerrado — restaram hoje apenas pequenas ilhas —, a água já não alimentava corretamente o lençol artesiano. Consequentemente, os grandes proprietários que implantaram seus projetos econômicos na região, começaram a fazer uma espécie de guerra pela água.

Ocorre que cada pequeno povoado por ali tinha pelo menos 3 mil pessoas que viviam e dependiam também dessas águas para desenvolver sua agricultura familiar. Com o passar do tempo, a água foi diminuindo e começou a haver uma situação de enfrentamento entre o grande capital e os moradores antigos, posseiros da região, que lá viviam há mais de 200 anos. Essa situação começou a gerar uma realidade de pistolagem, uma vez que os grandes fazendeiros passaram a contratar capatazes e jagunços que usavam de todo tipo de artimanha para tentar expulsar o pessoal da região e assim tomar conta das terras.

Elder Dias — A partir de quando esse processo se intensificou?

A intimidação começou a ocorrer de forma mais aparente por volta de 1985, mas se agudizou muito atualmente. As grandes empresas vieram com um discurso fácil, de trazer desenvolvimento e gerar empregos para as populações da região, consequentemente angariando mais riqueza para as pessoas. Ocorre que o posseiro não tem a titulação legal definitiva da terra, no máximo tem um título provisório. Os fazendeiros chegaram comprando os cartórios e os políticos de Salvador, que não entendem a realidade do lado oeste do São Francisco, que é uma realidade totalmente diferente. O litoral é uma coisa, mas o sertão da Bahia e o sertão de Minas é outra. Então, esses empresários foram legalizando essas terras. São terras que englobam milhares de hectares, você pode andar o dia todo de carro sem chegar ao fim delas.

Com isso foi acontecendo uma modificação radical na região. Os postos de serviço foram se transformando em grandes núcleos urbanos. Um exemplo é Luís Eduardo Maga­lhães, que até pouco tempo era um pe­queno entreposto e hoje tem um al­to padrão de vida, com alguns ho­téis de primeira classe cuja categoria tal­­vez até supere os de Goiânia. Isso ocorreu da noite para o dia em várias lo­calidades, viraram grandes polos ur­banos. Só que esses polos são basicamente constituídos por gente que não é do local. São pessoas alienígenas, que vieram de foram e são regidas por esse grande capital financeiro.

Na verdade, os proprietários dessas áreas ou moram nas grandes cidades do País ou fora dele. E eles financiam os capatazes, que são seus gerentes e que têm seus jagunços para implantar ou ampliar seus projetos na região. Essas empresas contratam grande número de técnicos especializados, que são amparados por esses capatazes-jagunços, tomam conta da terra e vão produzir. Os primeiros projetos produzem soja de forma espantosa, porque usam uma área que inicialmente nem se sabia que servia para produzir soja. O mesmo vale para o algodão e outras culturas.

Cezar Santos — O que aconteceu com a população nativa, ou o que vem ocorrendo?

Essa população nativa foi desterritorializada, perdeu seu território. E um grupo de pessoas quando perde seu território, perde também a noção de dignidade. Esse pessoal vai, então, aos polos de desenvolvimento, buscar uma forma de sobreviver. E aí começa uma série de explorações: é um trabalho em nível de servidão, ou seja, trabalho escravo, porque as pessoas são contratadas com contratos provisórios, carteira assinada às vezes com duração de dois meses e são dispensadas ao fim da etapa do trabalho. O mais grave: essa pessoa é dispensada de uma forma muito cruel. No período do trabalho, faz tudo de forma intensiva: o preparo do solo, a coleta dos tocos da vegetação desmatada pelo correntões [modo ilegal de desmatamento] etc.

A pessoa tem de trabalhar muito, senão não consegue dar conta da tarefa. E, nesse período, tem de morar na região, viver na fazenda. Para viver ali, tem de comprar daqueles que chamamos de “gatos”, que montam pequenas mercearias montadas para servir essa população. Então, esses trabalhadores dormem mal, em barracas de lona, cozinham seu arroz e feijão em latas e, quando chegam ao final do período de trabalho, o dinheiro que têm a receber não dá para pagar a dívida contraída com os “gatos”, as mercearias. Com isso, se tornam escravos do proprietário, são vítimas daquela situação, sem poder sair. Ele quer sair, mas não pode, porque os fazendeiros têm seus exércitos de jagunços para intimidá-los. Então, esse trabalhador tem de ficar ali, ganhando pouco e tentando sobreviver num trabalho escravo.

As mulheres mais velhas vão trabalhar como empregadas do­mésticas desses grandes novos senhores alienígenas que chegaram ao local. As mocinhas, mais novas e mais bonitas, acabam na prostituição em borracharias, em postos de gasolina, ou em pequenos serviços de pouca remuneração. Assim, começa a surgir um grande índice de pobreza e de alta desumanidade com esses homens que trabalham nas empreitadas, com a prostituição infantil e o tráfico de pessoas, principalmente de mulheres, de uma área para outra.

Marcos Nunes Carreiro — E como isso se fecha de novo na questão da água?

Essa situação vem se agravando a cada dia, porque novos polos incentivados pelo capital internacional vão surgindo. Até chegar aos dias atuais, em que o Aquífero Urucuia, que abastecia os rios da região, não tem mais água para sustentá-los. Um rio que tinha quatro metros de fundo em determinados locais, hoje tem quatro centímetros. A água tornou-se insuficiente para a população das cidades, mesmo porque o número de habitantes cresceu.

E essa água também não é suficiente para irrigar todos os tipos de cultígenos. Esses grandes proprietários começaram então a lançar mão de uma série de artimanhas, desviando um rio para cair em outro e fazer represas ou cavando profundamente e desviando as cabeceiras para essas cavas, chamadas de piscinões, com a finalidade de irrigar as lavouras durante determinadas épocas do ano. E o pouco de Cerrado que subsiste na região está sendo cobiçado por grupos econômicos estrangeiros — chineses e japoneses, principalmente, que estão querendo investir na área — porque ainda há um pequeno filete de água correndo superficialmente.

Então, onde há essa água correndo, estão desmatando tudo e fazendo captação por pivô central para irrigar plantações. O que isso tem gerado? Conflitos com o morador primeiro dali, que sempre criou suas dez cabeças de gado, mas não pode soltá-las mais na vereda à margem do rio porque aquilo que era dele já não é mais. Se quiser colher um pequi que só nasce em determinada região, não pode mais. Por quê? Primeiro, porque grande parte do Cerrado foi desmatada e, segundo, porque a terra não mais lhe pertence, agora é de algum grande proprietário. Temos, repito, muitos conflitos entre a população nativa e os representantes desses grandes grupos internacionais

Cezar Santos — E quem são esses representantes?

Políticos assentados em Salvador e que não conhecem a realidade do Oeste do Estado; gerentes locais, comprados a alto preço; e institutos de meio ambiente, principalmente da Bahia, comprados para fazer audiências públicas e legalizar o desmatamento. Para ter ideia, lá ainda ocorrem desmatamentos com correntões. E são áreas grandes em relação ao que existe atualmente — até porque não existe muito mais a ser desmatado, se existisse, estariam destruindo uma área ainda maior. Mas a última grande reserva de Cerrado que existe na região — de 24 mil hectares, entre os rios Santo Antônio e do Meio — está prestes a ser desmatada por um grupo chinês, em um empreendimento que vai de um rio ao outro.

Elder Dias — Essa é a área do Cerrado ou da empresa?

A área que será desmatada, a da empresa é bem maior. O povo que morava ali, vendo essa situação de a água dos rios minguarem, assim como sua vegetação, entrou em pânico e começou a fazer movimentações. Então, existem grandes movimentos hoje em todo o Oeste da Bahia e de Minas Gerais no sentido de enfrentar essas pessoas. Se não for tomada uma providência em nível federal, vamos chegar a uma situação de calamidade pública tal que a população partirá para um enfrentamento.

Como os empregados desses gran­des grupos têm armas, a população também está se armando para lutar contra eles. Em um momento teremos uma situação social incontrolável, além da grande pobreza gerada e do imenso dano ambiental. O futuro desses rios é muito curto; pelo histórico deles nos últimos tempos, não durarão mais do que cinco anos.

Cezar Santos — O município de Correntina está nessa região?

Sim, está, assim como Luís Eduardo Magalhães, que era parte do município de Barreiras.

Elder Dias — Então, esses dois municípios foram subdivididos em vários outros?

Sim, mas existem outros municípios ali. Jaborandi, por exemplo, foi desmembrado de Correntina e tinha uma área bastante preservada. Hoje, já não existe nada de Cerrado. Em Santa Maria da Vitória, onde existe o Rio do Meio e o Rio Santo Antônio, está havendo uma ocupação intensa de suas cabeceiras pelos chineses. São Desidério, um município que existia entre Barreiras e Correntina, se transformou da noite para o dia em um grande polo de desenvolvimento regional.

No próprio município de Cor­rentina já existem verdadeiras “cidades” longe da cidade, cujos planos urbanísticos foram feitos na Europa e transportados para cá. Essas cidades localizam-se às margens dos rios. Imagine quando essas cidades começarem a se desenvolver, como já está acontecendo, e chegarem ao tamanho de Luís Eduardo Magalhães. Tudo que existe rio abaixo acabará. Só não sei como essas populações vão se manter, pois a água está acabando e vai acabar em no máximo cinco anos, se tudo continuar no ritmo de destruição atual.

Cezar Santos — E não há denúncias sobre essa situação por parte da imprensa baiana ou do Ministério Público? Estão todos alheios?

Denúncias locais existem. Mas só chegam até o Vale do São Francisco. A partir de lá, da outra margem, é outra modalidade de política e de pensamento que domina a Bahia. Por isso, queria criar o Estado do São Francisco, porque aquilo é outra realidade. Tanto que os institutos de meio ambiente não têm noção do mal que estão fazendo para a população local, ao autorizar esses desmatamentos em larga escala. Portanto, as denúncias ficam apenas como fato localizado, não chegam a ter ressonância.

Elder Dias — Não têm força política?

Não têm. Há mais de 20 anos tento fazer reportagens para denúncia esse problema na região. Já levei até lá, inclusive, veículos de alcance nacional. Fizemos várias reportagens para o “Globo Rural” a respeito, por exemplo. Só que o foco principal vira periférico nas matérias. Então, a situação foi se agravando e tende a se agravar mais. Por quê? Bem, temos a Serra Geral de Goiás, formada por calcário. As cristas de calcário apontam em Formosa. Esse calcário mergulha até 500 metros e vai aparecer no Vale do São Francisco. A igreja de Bom Jesus da Lapa, por exemplo, fica em uma crista do calcário. Lagoa Santa, Rio das Velhas e Rio Doce, todos em Minas Gerais, têm suas águas originárias das galerias do calcário. O Rio Jequitinhonha, também. Quer dizer, esses rios são constituídos por águas que vêm do Cerrado.

E o que alimenta essas galerias? O arenito que está por cima do calcário. Ele tem uma cobertura vegetal e recebe a água da chuva. Essa água é absorvida e seu excesso entra nas galerias do calcário. Ocorre que essas galerias estão cada vez menores. Isso atinge rios como o Doce e o do Carmo — esse que passa por Mariana e é afluente do Rio Doce. O Rio Jequitinhonha já corre somente por uma parte de seu trecho original. Isso faz com que o São Francisco, que depende desses rios e das águas dos aquíferos Urucuia e Bambuí, já tenham trechos em que se tornou possível atravessá-lo a pé.

O fenômeno é o seguinte: o arenito mergulha e não tem mais água para “chupar”. Então, a água cai e fica na superfície ou evapora. Quando se deixa o solo do arenito Urucuia desnudo, há um elemento, o silte, que atua como um cimento por cima ou cria uma crosta de argila que não deixa a água penetrar. Logo, a água cai, evapora e vai cair em outro lugar, fazendo com que a água do aquífero diminua até chegar ao nível de base. Hoje, para furar um poço artesiano no local é preciso ir, às vezes, a mais de 400 metros até atingir uma pequeníssima quantidade de água. Ora, isso significa que o aquífero chegou a seu nível de base. Quando isso acontece é sinal que as nascentes acima todas secaram, pois a água corre por gravidade, não sobe. Isso faz com que só exista água nas partes baixas dos rios.

Alguns rios chegaram a secar mais de 100 quilômetros, da nascente até onde começa a correr atualmente. Tudo antes era rio; hoje, até determinado local, só existe seu rastro e não mais o rio.

Cezar Santos — O que está acontecendo, então, é um desastre ambiental de grande monta, como o de Mariana (MG)?

É um desastre maior ainda, na forma de um crime contra a humanidade, pois não se pode refazê-lo mais. Todos aqueles empreendimentos de mineração em Mariana (MG) já foram estudados minuciosamente pela melhor escola de geologia do Brasil, que é a da Universidade Federal de Ouro Preto. Todos os desastres como o de Mariana já foram previstos. Primeiramente, porque lá é uma parte do Quadrilátero Ferrífero de Minas, onde o mineral está todo fragmentado, junto com areia e argila. Então, no mesmo local onde se cava se deixa também as represas; com o rejeito, se reforça a cabeceira dessa barragem para reter o rejeito que vem do material minerado, que é o ferro.

Só que, junto com o ferro, vêm a areia e argila, que é um material muito pesado. Lava-se tudo aquilo para purificar. Ao lavar e retirar o ferro, joga-se o rejeito nessas grandes represas. É preciso manter o equilíbrio para chegar no máximo a 75% da capacidade do que a represa suporta, pois, se passar disso e vier uma chuva mais forte e aumentar o peso daquele material que já é pesado, tudo se rompe facilmente. Afinal, a barragem é feita de rejeitos, que não é um material apropriado para fazer barramentos, já que rejeito absorve grandes quantidades de água, por ser poroso, feito de arenito e argila O arenito absorve grandes quantidades de água e a argila não dá a liga necessária para ter uma massa bem compacta. Assim, qualquer alteração no peso desses rejeitos, vai causar rompimento de represa. Então, isso vem sendo anunciado pela escola de geologia de Ouro Preto há muito tempo e desde a década de 1980 vêm acontecendo casos de rompimento de represas.

Elder Dias — Mas não nesse porte de agora, certo?

Por que o porte desse rompimento de Mariana foi maior? Primeiro, porque foram duas represas. Uma não suportou o impacto da outra e ambas levaram tudo que estava abaixo. Mas por que isso ocorreu? Em função da desterritorialização do homem do campo. Chegam as multinacionais anunciando enriquecimento fácil, a população é atraída para a cidade e vai ocupar as áreas impróprias para moradia. Mariana é um anticlinal, ou seja, uma cidade erguida em um morro. Havia ocupações — ainda que antigas, como o distrito de Bento Rodrigues — feitas nas encostas desse morro. Uma área imprópria para habitação humana. Uma vez que essa represa se rompe, ela vai afetar cada vez mais a população, pois cada vez mais a cidade está povoada.

Porém, se compararmos os dois fenômenos, o de Mariana causa um grande impacto, pois mata pessoas e destrói casas. Afinal, é uma língua de lama muito pesada, contendo fragmentos de minério de ferro, elemento tão pesado quanto o quartzo. Aquilo vai sendo levado até se dissolver no rio. Em um primeiro tempo é um impacto muito grande. Mas, se pensarmos em termos de tempo da natureza e se houver planejamento e não simples especulação imobiliária que coloque as pessoas nas encostas da serra, um desastre como esse pode se tornar até um elemento benéfico porque ele forma solos aluvionais, próprios para vários tipos de cultivos, como os da civilização egípcia antiga. Eles viviam dos aluviões trazidos pelo Rio Nilo. Ou seja, em curto prazo o impacto ali é grande, mas no longo prazo é recuperável.

Cezar Santos — Na Bahia não vai ter como recuperar?

O que está acontecendo no Oeste da Bahia não tem recuperação. Esse é o grande problema, pois causa um prejuízo irreparável à humanidade. Em primeiro lugar, porque o Cerrado é uma vegetação que já chegou ao seu clímax evolutivo. Ou seja, não pode ser revitalizado ou replantado. Uma vez degradado, não mais se recupera. O segundo ponto é que as águas que dependem da absorção da chuva pelo sistema radicular complexo do Cerrado estão diminuindo. Vai chegar um tempo em que elas vão sumir. Isso acontecendo, primeiro vão desaparecer todos os afluentes da margem esquerda do São Fran­cisco, que são os que mantêm a perenização do rio.

Todos os rios provenientes de aquífero são perenes, ou seja, correm de forma contínua, não ficam secos. Os que não são provenientes de aquíferos dependem do lençol freático. Este pode ser afetado de duas formas. O primeiro é por estiagem prolongada, não dependendo da ação do homem, mas da natureza — este ano foi o mais agudo do fenômeno El Niño, que traz chuvas demasiadas para alguns locais e também grandes estiagens para outros. Outros fenômenos que afetam as correntes aéreas — por sua vez afetadas pelas correntes marítimas, que dependem da temperatura da água do mar. As correntes aéreas, ao longo do tempo, demonstram que são cíclicas.

Vamos tomar um tempo geológico mais recente, por exemplo. Há 11 mil anos houve o fim da última era glacial. A neve recuou em direção ao Polo Norte, depois de estar quase ao nível do trópico. Nesse fenômeno, a neve derrete e o nível do mar começa então a subir e há uma transformação muito grande no interior dos continentes. A água do mar começa a se aquecer e, com isso, as correntes marinhas mudam de direção, influenciando as correntes aéreas. Em suma, onde era deserto começa a chover e onde chovia fica mais seco. Temos como exemplo o deserto de Atacama, no Chile, que até então era uma área de floresta temperada, com grandes lagos. Hoje é o mais seco deserto do mundo e os lagos viraram depósitos de sal. A Amazônia era, então, o chamado Deserto de Óbidos. Transformou-se totalmente, em uma área de floresta equatorial úmida. De 11 mil anos para cá, o que houve foi uma mudança na circulação das correntes marinhas. São ciclos da terra, influenciados por um mecanismo que ocorre em seu interior, chamado correntes de convecção, que ocorrem no chamado manto da terra. Ora essas correntes são frias, ora quentes. Quando são frias, vão resfriar o fundo do oceano; a água, então, sobe fria até a su­perfície, mudando a direção das correntes marinhas. Se for quente, ocorre da mesma forma: além do aquecimento das águas oceânicas, isso pode provocar outros fenômenos.

Frederico Vitor — São tempos, ciclos diferentes?

O problema é que isso não ocorre no tempo medido pela história do homem, mas no tempo da natureza. São ciclos em escala geológica, de 10 mil ou de 15 mil anos. Hoje sabemos que existem correntes marinhas oriundas da Groenlândia que vêm a uma profundidade de 4 mil metros, se deslocando lentamente por todo o globo. Elas completam esse ciclo no prazo de 8 mil a 10 mil anos. Por onde essas correntes passam, vão modificando ambientes: modificam a temperatura do oceano, que modificam as correntes marinhas, que afetam as correntes aéreas, que, enfim, mudam o clima continental. Temos de entender todo esse complexo.

Os rios que nascem de aquíferos vêm de estruturas que foram formadas há, no mínimo, 65 milhões de anos. É o caso do Aquífero Guarani e do Aquífero Urucuia. Este é o mesmo que alimenta o Rio Par­naíba, que forma uma bacia independente. São rios perenes, porque os aquíferos tinham grande quantidade de água. Também há os rios que correm sob rocha não porosa, chamada de cráton [estruturas geológicas muito antigas e ricas em minerais metálicos]. Existem dois crátons no Brasil: o cráton do leste do Rio São Francisco e o cráton do Amazonas, que vai da margem esquerda do rio até o curso médio de alguns rios que o alimentam do lado direto — como Xingu, Tapajós, Teles Pires, Madeira e outros. Os rios que correm sob o cráton dependem do lençol freático. Já o lençol depende, antes, das mudanças climáticas cíclicas, que podem ser muito úmidas ou muito secas, dependendo da época. Esse é um ponto de vista “naturalmente falando”.

Já com a ação do homem, antropicamente falando, o lençol freático depende da vegetação. E o homem retirou grande parte da vegetação. Quando isso ocorre, o lençol freático é afetado: a água da chuva, que cai para primeiramente formar a chamada camada de aeração — que corre no meio das folhas —, não chega a atingir o lençol, pois a evaporação se dá de forma muito rápida, já que o ambiente está muito seco. É bom lembrar que o lençol freático é uma faixa muito curta de água entre a zona de aeração e a zona de saturação, a partir da qual se inicia o aquífero. O lençol pode ser afetado de duas maneiras: por efeitos climáticos naturais e por ação do homem.

O que ocorre com os rios da margem direita do São Francisco? A grande maioria desaparece no período da estiagem — a exceção é o Rio das Velhas, que vem de um aquífero que nasce no Cerrado e, por isso, não seca. Isso ocorre porque esses rios correm em cima de um cráton que já foi desmatado e que é afetado ciclicamente por estiagens prolongadas. São os chamados rios temporários, que vêm por todo o vale da margem direita do São Francisco até o Nordeste do Brasil.

Portanto, a vida de um rio, sua perenização, depende das águas oriundas de aquíferos, que são rochas porosas que congregam grande quantidade de água para alimentar os rios. Se esses aquíferos não são alimentados — como não estão sendo —, a tendência desses rios é desaparecer. E hoje não há tecnologia capaz de retroalimentá-los.

Nunes Carreiro — E existe alguma pesquisa em andamento para que se possa conseguir a revitalização desses aquíferos?

Não. O que há são algumas pessoas tentando solucionar alguma coisa. Que soluções estão sendo buscadas? Primeiramente, para regenerar algum aquífero do Cerrado — e a maioria dos aquíferos está no Cerrado — é preciso recuperar o bioma. Isso é impossível, por duas razões: uma, que a planta do Cerrado já chegou a seu apogeu evolutivo e só nasce em um tipo de solo apropriado para ela.

O segundo ponto é que essa planta tem um desenvolvimento muito lento e, até chegar à idade adulta, e exercer o papel ecológico que precisaria demandaria tempo demais. Um buriti, para chegar à idade adulta, precisa de 500 anos; o capim-barba-de-bode, que é pequenino, ninguém dá nada por ele, fica adulto com mil anos de idade — sua raiz é uma esponja que se infiltra pelo solo e guarda grande capacidade de água para alimentar os lençóis subterrâneos.

Então me diga: quem hoje teria tecnologia para fazer muda de capim-barba-de-bode? Primei­ramente, ninguém se interessa por isso, porque não dá lucro; em segundo lugar, não existe tecnologia de conhecimento para quebra de dormência das sementes, porque não existe investimento em pesquisas neste País no sentido de preservação ambiental. A pesquisa nas universidades brasileiras funciona hoje como moeda de troca. Não é uma pesquisa em que o pesquisador coloca sua vida. Ele teria de ser, na realidade, um profissional diferenciado dos demais, porque tem um projeto para a vida. Hoje, os projetos de pesquisa são para um ano ou dois. Como formar um pesquisador e desenvolver uma pesquisa em dois anos? Passado esse período, é preciso dispensar o bolsista, porque ele não terá mais direito à bolsa. É como se tivessem um time de futebol e investissem em sua categoria de base, mas sem poder reter os melhores jogadores. Ao dispensá-los, é preciso começar tudo de novo.

Elder Dias — Aquele conhecimento do bolsista se encerra nele…

Exato. Outra coisa: não será dada mais continuidade àquela pesquisa. Uma terceira questão é que as pesquisas estão vinculadas aos cursos de pós-graduação. Quando o mestrando ou o doutorando defendem seus trabalhos e entregam seus volumes de dissertação e tese, eles nunca mais são acessados. Ora, isso não é pesquisa, mas, sim, moeda de troca. Pesquisa é quando se assume um tema como projeto de vida e se forma, em torno dele, uma equipe de pessoas talentosas e com vocação para dar continuidade ao trabalho, inovando e agregando material àquilo que se iniciou. Isso porque um dia a gente vai embora ou não tem mais forças para fazer pesquisas. Mas ficaríamos extremamente satisfeitos se nossos alunos continuassem o que nós começamos. Claro, para isso, é preciso ter vocação.

Elder Dias — O sr. tem a visão da pesquisa como um sacerdócio.

Sim, porque não há horário definido para se fazer nada. Quando se descobre o fio da meada no trabalho, vai-se tempo adentro, esquece-se de tudo. Mas as universidades, que deveriam incentivar a pesquisa, fazem, como norma, instituir o relógio de ponto. Como o pesquisador pode conviver com um relógio de ponto? Não tem como, é impossível. É matar a pesquisa pela raiz. O que existe com o nome de pesquisa nas universidades é essa moeda de troca: faz-se um projeto de pesquisa, que é aprovado com dois bolsistas; então, o professor é liberado de uma turma na carga horária. Ou seja, projetos são feitos para diminuir horas em sala de aula, não para ter um resultado na pesquisa. E o quadro se agrava por não termos uma boa resposta. Os alunos não são levados a buscar respostas para os problemas imediatos que estão aí, como essas novas tecnologias.

Voltando à pergunta: quais seriam as tecnologias que poderiam caminhar para tentar reverter um dia essa situação de um bioma como o Cerrado? Há experimentos feitos para executar grandes curvas de nível e reter a água da chuva. Mas isso não funciona no solo do Cerrado, porque nele existe a formação de uma espécie de cimento na base, que não deixa a água penetrar. Também há outro problema, de que já falamos, que é o do desenvolvimento das plantas do Cerrado, que são muito complexas. Outra saída seria desenvolver algo como uma prótese, que funcionasse como uma vegetação artificial para captar as águas das chuvas.
Estamos tentando isso com a implantação de grandes funis de dois metros de comprimento com bocas de 40 centímetros. A ideia seria espalhar isso de 50 em 50 metros no meio da plantação. Eu tenho um orientando de pesquisa com o qual estou testando isso, mas até o momento os resultados são muito insignificantes. E outro fator é que os grandes proprietários são contra, têm muita resistência.

Marcos Nunes Carreiro — Isso ocorre por causa do alto custo?

Pelo alto custo e também por conta do manejo da colheita, dos pesticidas e dos adubos, que seria dificultado. O jeito seria fazer o experimento em pequenas áreas, cujo resultado poderia ser insignificante. Outra dificuldade é que as plantas do Cer­rado, por serem muito especializadas, só nascem em determinado tipo de solo. Como plantar um buriti em uma cabeceira que secou e cujo solo virou um tijolo duro? O buriti é de área úmida, de vereda, de brejo. Podemos até plantá-lo, mas ele não vai se desenvolver. É que o ambiente já está degradado totalmente.

Outro ponto é que os pesticidas usados para combater os insetos que vêm com as plantas exóticas também matam os insetos polinizadores das plantas do Cerrado. Cada uma dessas plantas do Cerrado tem seu inseto — ou seu animal — polinizador. Ao jogar o pesticida, acaba-se também com a possibilidade de aquela planta ser polinizada e gerar flores e frutos.

Cezar Santos — A devastação do Cerrado é um problema realmente grave. Mas não haveria solução se houvesse o fim da agressão ao bioma?
O problema são os aquíferos. Como alimentar as nascentes que já secaram? E os rios que estão em um nível muito baixo e que não têm mais água? Para recarregar esses aquíferos, primeiramente seria preciso replantar o Cerrado. Mas, por tudo que já falamos aqui, como é que replantamos o Cerrado?

Elder Dias — Isso não é o que acontece na África também, na savana?

A savana tem uma história evolutiva totalmente diferente do percurso do Cerrado.

Elder Dias — Mas e o solo, não é semelhante?

Não. O solo da savana é muito parecido com o da Caatinga. A terra é boa, mas o período de estiagem é mais longo. Por isso, dá árvores gigantescas, porque elas reservam em seu tronco uma grande quantidade de água para suportar a estiagem. São árvores espinhosas que perdem rapidamente as folhas ou fecham seus estômatos [estruturas das folhas que servem à transpiração da planta] ao primeiro sinal de estiagem. Isso não é uma coisa que não aconteça com as plantas do cerrado: elas mantêm a folhagem intacta em grande parte do ano, mesmo com no auge da estação seca; não perdem as folhas e mantém os estômatos abertos. Isso significa que o problema do Cerrado não é ligado à água. A história evolutiva do Cerrado está ligada a outros fatores. Por isso muitos consideram o Cerrado uma floresta de cabeça para baixo. As raízes de suas plantas são profundas e volumosas abaixo do solo, somente uma pequena porção fica aparente, na superfície.

Elder Dias — Em outras palavras, o que parece existir é alguma possibilidade de reter o que temos em questão de reservatórios de água, preservar o que há. Aumentar o volume dos reservatórios é uma missão muito complicada, assim como fazer os rios que perderam seu volume se recuperarem. É isso?

Eu diria que, em termos do que nosso conhecimento abrange atualmente, isso é irreversível. Como é que se recupera uma nascente que está acima do nível do lençol freático? Não tem como, porque a água não corre para cima. Pode ser que as populações tradicionais tenham soluções para isso e que nós não conheçamos. Pode ser que a pesquisa científica séria traga alguma solução para isso. Atualmente nós não temos como, mas devemos acreditar que futuramente, se se investir na pesquisa como se deve, buscando pesquisadores capacitados e com vocação, poderemos encontrar alguma saída. Mesmo que não se resolva o problema em sua totalidade, pelo menos vamos amenizá-lo.

Por exemplo, tomemos uma cidade como Goiânia, em que se pavimenta todo o solo urbano. Cria-se uma ilha de calor que, às vezes, é tão grande que surge uma atmosfera de baixa pressão impedindo uma atmosfera de alta pressão, carregada de chuva, de penetrar, de tão resistente que fica essa bolha. Pode-se amenizar isso dentro de um espaço urbano? Sim, desde que se criem mais áreas verdes, mais espaço para infiltração, para que o solo respire. Mas por que não fazem isso? Aí entra uma série de outros fatores, como a especulação imobiliária, a falta de pesquisa, a falta de gente séria.

Há projetos por meio de empresas de consultoria ambiental. Eu as conheço bem a fundo e posso dizer que a maioria absoluta não pensa no meio ambiente, mas em pegar aquele projeto pensando no econômico, não em uma solução ambiental.

Elder Dias — É o mesmo que ocorre em relação ao direito ambiental: preocupam menos a obediência à legislação do que em achar as brechas para implantar projetos de seu interesse.

Exatamente. Quando se faz, por exemplo, o resgate de fauna em uma área grande que vai ser inundada por um lago, o pesquisador sério que está ali tem consciência de que não está salvando aqueles animais. Ele sabe que está resgatando os animais daquela área, mas que ele será depois sacrificado, de alguma forma, ou no máximo vai acabar empalhado para estudo científico. Isso por uma questão simples: os animais têm seu território.

Cezar Santos — Como o sr. analisa o potencial da barragem do Ribeirão João Leite, considerando a necessidade da cidade e de sua população crescente?

A barragem do João Leite, quando feita, trouxe inúmeras consequências nocivas. Uma dessas consequências foi o desequilíbrio do ambiente. Tanto que ela provocou e está provocando várias epidemias de dengue. O mosquito da dengue tem seus predadores. Uma vez que se acaba com seus predadores e ainda cria-se um ambiente de água parada, ideal para o mosquito se proliferar, onde havia água corrente, esse tipo de problema é agravado.

Cezar Santos — Então, o aumento de casos de dengue na Grande Goiânia pode ser consequência disso?

Perfeitamente. Assim como no Brasil. Goiânia é uma fronteira cultural. Para ir a qualquer parte do Brasil, Goiânia é um caminho. Então, se alguém for picado aqui por um mosquito contaminado, vai levar essa contaminação para outro local. E, se lá alguém for picado por outro mosquito Aedes aegypti, este vai picar outra pessoa, que então vai ficar com dengue.

Este é um dos tipos de contribuição nociva que trouxe o reservatório.

Mas há mais: as pessoas não imaginam como funciona um lago. Acham, por exemplo, que ele vai recarregar os lençóis subterrâneos. Só que um lago não faz isso. O processo de sedimentação de um lago é lento. Ele forma em seu fundo uma camada de argila, que vai aumentando e, cada vez mais, impedindo a infiltração da água no solo. Uma terceira consequência é que uma barragem do porte da que temos no João Leite sufoca as pequenas nascentes que o alimentavam. Isso quer dizer que, em longo prazo, o lago poderá ter muitos problemas em relação à diminuição de quantidade de água.

Elder Dias — E isso é algo de que já estamos tendo notícia neste lago.

É que nós não imaginamos que dois anos seguidos de estiagem sejam ca­pazes de baixar aquela enorme quantidade de água do lago a um nível crítico. Mas isso aconteceu em São Paulo. Por quê? Porque o la­go não é mais alimentado como de­veria ser. Seus tributários não o alimentam mais como deveriam alimentar.

Outro exemplo é o Rio Negro. Com dois anos de estiagem forte, um rio daquele, de um porte muitas vezes maior do esse lago aqui de Goiânia, baixou e ficou com o nível de um rio comum, cheio de ilhas. Nem se podia imaginar que aquele era o Rio Negro, afluente do Ama­zonas. Portanto, uma estiagem prolongada pode provocar tudo isso, ainda mais no caso do Rio Negro, que não é um rio alimentado por aquífero, mas corre sobre um cráton e, então, depende diretamente do lençol freático. Esse é o mesmo caso das águas que correm para o lago do João Leite, com rios e córregos que nascem na Formação Araxá, que não é um aquífero, mas águas do lençol freático. Uma estiagem mais prolongada pode provocar o desaparecimento do lago quase que de imediato, como aconteceu em São Paulo, onde o nível baixou drasticamente.

O governo de Goiás fica numa situação difícil. Acredito que nossos governantes querem o bem-estar da população. E eles se apoiam em quem? Em seus órgãos ambientais, em seus engenheiros e em suas equipes técnicas, que, muitas vezes, não têm o conhecimento técnico necessário sobre a dinâmica da ecologia de um lago, o que poderia sugerir algo um pouco diferente. O governo faz isso em uma ânsia e uma necessidade de conseguir dar conta de uma população com demanda cada vez mais crescente. Entretanto, se se faz um lago para atender a essa demanda por mais água, usa-se o mesmo raciocínio que se faz em relação aos carros. A população de automóveis está aumentando em Goiânia. O que fazem? Diminuem as ilhas e as calçadas para alargar as ruas. Chega um determinado momento em que tudo isso vai entrar em colapso. Qual é a real solução? Transporte público de boa qualidade. A mesma coisa ocorre em relação à água: a solução é impedir o êxodo rural. Aí voltamos à questão inicial: precisamos impedir que o grande capital entre no campo e desestruture as famílias que lá vivem, obrigando essas famílias a vir para a cidade, tornando-se uma população sem teto.

Elder Dias — Na verdade, esse problema tem duas pontas. É a cidade crescendo e exigindo maior consumo de água e o agronegócio destruindo a água na outra ponta, a da monocultura.

O grande exterminador do futuro é o grande capital, esse modelo pre­datório que foi instalado no Bra­sil. Ou se conserta isso, ou não se conserta.

Elder Dias — Temos até hoje o avanço do cultivo sobre as áreas de Cerrado. O que o sr. acha do congelamento dessa fronteira agrícola? Poderia ser uma solução?

Já passou o momento de proceder esse congelamento. Veja o que os agrônomos ligados aos grandes grupos estão pesquisando: eles querem ter maior produtividade do solo, o chamado plantio direto, num espaço geográfico menor. Porém, isso demanda uma série de outros males futuros que nem não somos capazes de imaginar. Nós imaginamos hoje qual será a consequência do uso dos transgênicos? Jamais conseguiríamos imaginar. Nós conseguimos imaginar a consequência do plantio direto em que temos que usar um herbicida voraz, que mata as chamadas “plantas daninhas”? Não sabemos as consequências. Chegamos a um ponto em que deveríamos parar para pensar para encontrarmos uma saída. Quem sabe a saída esteja no diálogo, esteja na cabeça de todos pensando juntos, não apenas na cabeça de uma pessoa que pensa como ecologista cultural, ou como filósofo, ou como técnico agronômico.

Marcos Nunes Carreiro — A questão do pesquisador parece ser muito importante para o sr.

O pesquisador, muitas vezes, é deixado de lado. Não se conhece a história dele. Por exemplo, Aziz Ab’Sáber [um dos geógrafos mais importantes do Brasil e que presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), morto em 2012] morreu encostado em um canto da USP [Univer­sidade de São Paulo] sem que os novos dirigentes soubessem a importância que ele teve para ciência brasileira.

Elder Dias — É um trabalho ingrato, pois muitos dos cientistas morrem sem colher o fruto da semente que plantaram. Isso fica para as gerações futuras, se a pesquisa for levada a sério.

E ainda mais do que isso: como eu já disse, tem pesquisa para o mercado e pesquisa para preservar. Qual delas será o caminho seguido?

Elder Dias — Pesquisa é questão de décadas e realmente o Brasil não a leva a sério. Enquanto aqui há 80 patentes registradas por ano, nos Estados Unidos são 200 patentes por hora. É uma discrepância total.

Não dá para comparar. E mais um exemplo é quanto a essa pergunta que fiz. A pesquisa em questão existe para aumentar a produtividade ou para a preservação? É a mesma questão em mito do fogo. Criou-se um preconceito contra o fogo no Cerrado. Ora, o Cerrado é filho do fogo. Nasceu com o fogo, convive com ele. Ecologicamente, são irmãos. É o fogo que dá força ao Cerrado, pois ele acentua o oligotrofismo de seu solo. Ele quebra a dormência da semente. Mas, como conviver com o fogo em uma área altamente povoada? Isso traz desconforto para o homem. Cria-se uma saia justa. Porém, nós vamos pensar no tempo efêmero do homem ou no tempo da natureza? Pois, para se recuperar, o Cerrado precisa do fogo, por mais que ele seja nocivo ao homem ou à agricultura. Estão pensando em plantar ou em preservar? Se for preservar, você tem que conviver com o fogo; agora, se for para plan­tar, é outra história. O fogo tira os nutrientes do solo, e o Cer­rado precisa de um solo sem nutrientes. Aí que está a grande questão.

Elder Dias — A questão do solo do Cerrado, como o sr. já disse em outra entrevista ao jornal é que, depois que jogar o calcário para correção da acidez, é impossível voltar atrás. Nem com o fogo isso ocorre?

As condições naturais do solo do Cerrado não se restauram nem mesmo sob ação do fogo.

Cezar Santos — E o que vira esse solo corrigido para a agricultura? O que ocorre com essa terra se for abandonada?

Para o cultivo, esse terreno tem um solo melhorado, agronomicamente falando. Porém, se for abandonado, vão se formar ali blocos de pedra dura, cimentados que não servem para nada.

Elder Dias — Uma área desertificada?

Será formado um deserto como o do Atacama. Existem desertos que são só areia. É o que ocorreria se desmatassem o Su­do­este goiano ou o Oeste da Bahia, onde já houve desertos. Então, voltaríamos a ver ali desertos, mas somente arenosos. Mas, se jogar calcário ali, a chuva que vier fará aquela mistura virar pedra. Como o calcário tem sal — afinal toda ro­cha calcária é originária de fundo de mar, por isso existe a salinidade na água proveniente do calcário —, ele saliniza e cria blocos de ci­mento, como no deserto de Atacama.

Elder Dias — Mas o Cerrado não se regeneraria?

Não, o Cerrado não volta e talvez planta alguma, devido à quantidade de sal, como aconteceu com o Mar de Aral.

Elder Dias — O Mar de Aral é uma possibilidade de sentença para os rios dessas áreas?

No Rio São Francisco, por exem­plo, tem sido criada uma situação muito semelhante à que aconteceu com o Mar de Aral, que é alimentado por dois rios. Era uma bacia endorreica, um mar que não tinha saída para o oceano. Os rios levavam a quantidade necessária de água para manter o mar a um nível estável. A antiga União Soviética, tentando ser autossuficiente na produção de algodão, desviou os dois rios que alimentavam o mar, Amurdarya e Sydarya. Eles foram transplantados para irrigar as plantações de algodão. O que aconteceu? O mar não recebia mais a quantidade de água necessária. Rapidamente, ele foi desaparecendo, deixando um solo com muita salinidade. No primeiro vento, sobe uma quantidade de sal que toma conta da região e até vai para lugares distantes. O resultado é que por causa disso hoje 30 milhões de pessoas sofrem com doenças brônquio-respiratórias, incluindo câncer, sem contar que a produção de algodão não vingou e o mar secou.

O que está acontecendo com o Rio São Francisco é a mesma coisa. Essa transposição é algo muito mais sério do que se pode imaginar. Existe o canal norte, que vai a 750 quilômetros a partir da represa de Sobra­dinho até o mar. A água é bombeada para 300 metros acima — So­bradinho está embaixo e a água tem de subir a Serra de Borborema para chegar ao canal e, assim, começar a correr. O canal tem 25 metros de largura por 12 metros de profundidade, em uma área de insolação muito forte. Cerca de 30% da água evapora. O outro vai para Fortaleza, saindo de Sobradinho e percorrendo 620 quilômetros até chegar ao mar na capital do Ceará. Também tem 25 metros por 12 metros de água correndo sobre o concreto, também em área de insolação muito forte — portanto, 30% evapora da mesma forma. De cada um dos canais, saem canais menores, para irrigar as plantações de cana do Nordeste. Em vez de 25 metros, esses canais têm de 3 a 5 metros de profundidade por 5 metros de largura, ou seja, é uma quantidade imensa de água que corre por cima de concreto.

Marcos Nunes Carreiro — E qual a consequência desse processo?

Uma vez que se faz isso, a dinâmica do rio fica acelerada. Os afluentes que alimentam o São Francisco, então, começam a correr mais. Se correm mais, passam a “querer” mais água das nascentes, dos aquíferos, que já estão com pouca água. Eles puxam mais água, sugam mais, pois sua dinâmica mudou. Além de aumentar a velocidade, eles carregam mais sedimento, o que aumenta o assoreamento. Consequência: o São Francisco já não é mais um rio. Ele é feito de pedaços de lagoas que se comunicam, até chegar a Sobra­dinho, que é um lago. Até quando esse lago existirá? É uma questão de pouco tempo que já sabemos.

Isso tem feito surgir uma classe social no Nordeste chamada “ladrões de água”. Para combatê-los, foi criada uma polícia montada armada. A pessoa tem de chegar com sua latinha de Leite Ninho amarrada a uma cordinha e pegar a água desses canais apenas para levar para usar em casa. Só se pode pegá-la para uso doméstico. Você não pode ter uma horta e querer irrigar com essa água. Não pode ter uma plantaçãozinha de soja, de feijão, de arroz. Nada disso. Se alguém pegar mais do que um balde d’água por dia, já é classificado como “ladrão de água”.
E quem são esses ladrões? São os ribeirinhos que sempre viveram daquela água. São índios, quilombolas, que sempre viveram ali, dependendo da água para sua agricultura familiar, que é a agricultura que sustenta a mesa do brasileiro. O resto são commodities. O Brasil dos grandes proprietários produz commodities e não alimentos.

 

ZDA

 

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