“Existem modismos que atrapalham demais nosso setor. O mais recente deles é a seleção de Nelore para marmoreio. Tem criador querendo fazer gordura em um animal de pouca gordura, criado em pastagens tropicais, quase 70% delas em processo de degradação. Marmoreio se obtém em confinamento. A pasto não se faz, e ponto.” A polêmica declaração de José Bento Sterman Ferraz, pesquisador da USP de Pirassununga, SP, durante entrevista concedida à DBO em abril deste ano, caiu como uma “bomba” sobre o mercado de seleção da raça. Em um bate-papo com os jornalistas Moacir José e Maristela Franco, na Seção “Prosa Quente”, o pesquisador avaliou os processos de seleção em andamento no País e reacendeu uma antiga discussão: é possível selecionar zebuínos para essa característica?
Em que condições e a que custo? – Associado à qualidade de carne, por influenciar em sua maciez e sabor, o marmoreio – ou melhor, a ausência dele – sempre foi uma “pedra no sapato” da raça Nelore e seus criadores. Fornecedor histórico de carne magra, por sua genética e pelo sistema de criação extensiva predominante no Brasil, esse gado zebuíno tem sido frequentemente alijado do mercado gourmet, que se dispõe a pagar valores altos por cortes com gordura entremeada. Discordando de Bento Ferraz e outros técnicos quanto a prioridades, um grupo de selecionadores está fazendo esforço significativo para incorporar essa característica à raça, tarefa que consideram não apenas possível, mas necessária. De perfis diferentes, cada um responde, à sua maneira, à pergunta inicial da reportagem, mas todos acreditam que esse trabalho precisa ser feito aqui e agora.
Interesse crescente – Um dos projetos de seleção para marmoreio mais conhecidos no País é o “Nelore do Golias”, conduzido pelo criador Fábio Souza de Almeida Filho, o Fabinho, de Araçatuba, SP. Por meio de cruzamentos endogâmicos (entre parentes), ele resgatou a linhagem desse raçador, que havia sido importado da Índia em 1962 e deixara poucos descendentes, mas tinha um grande diferencial: sua progênie fornecia carcaças com marmoreio. Essa descoberta, em 2008, foi da zootecnista Marina de Nadai Bonin, durante seu trabalho de mestrado na USP-Pirassununga. Após avaliar progênies dos 13 maiores genearcas formadores da base genética do Nelore no Brasil, em características de carcaça, ela constatou que os filhos de Golias apresentavam médias superiores para área de olho de lombo (AOL) e marmoreio.
Naquele mesmo ano, o projeto Golias ganhou novos horizontes, com a formação do Condomínio Teles de Menezes e das bases de um plantel de matrizes a partir de 120 doadoras, que geram aproximadamente 700 prenhezes de FIV por ano, número que deve crescer ainda mais em futuro próximo. “Uma vez ouvi uma frase de James Cruden, ex-CEO da Marfrig Foods, que jamais esquecerei: quando o zebu conseguir produzir carne com maciez e marmoreio, colocará as raças britânicas debaixo do braço”, relembra Almeida, acrescentando: “Este é o diferencial que perseguimos”. Fabinho não é o único. Segundo levantamento da DGT Brasil (empresa de capital norte-americano que desenvolve e comercializa softwares de interpretação de imagens de ultrassom para avaliação de carcaça e qualidade de carne), existem hoje sete projetos de seleção de Nelore no País com foco em marmoreio.
Nesses projetos já foram avaliados 10.602 animais nos últimos cinco anos, com evolução considerável no teor de marmoreio: de 1% para 3%, percentual duas vezes superior à média nacional da raça Nelore. Tal índice pode elevar a produção brasileira do nível standard – termo utilizado pelos norte-americanos para classificar carne commodity, com ausência ou apenas traços de marmoreio – para select, que indica um padrão melhor de qualidade, com marmoreio leve. “À medida que a indústria se torna mais consciente quanto às demandas de certos grupos de consumidores, mais claro fica que eles não desejam apenas carne bovina, mas sabor, qualidade. Pesquisas têm mostrado que essas pessoas estão dispostas a pagar por um nível maior de satisfação em relação ao produto que consomem”, diz a diretora técnica da DGT no Brasil, Liliane Suguisawa.
Um estudo recente da Universidade do Estado do Colorado, nos EUA, apontou forte relação entre o nível de marmoreio e a percepção de qualidade do consumidor. A maciez e a presença de um sabor “amanteigado” na carne foram responsáveis por 91% das variações nas experiências sensoriais. Além disso, 40% das variações quanto à percepção de maciez e 71% quanto ao sabor desejável ocorreram por causa do nível de marmoreio. “Isso indica que selecionar animais com alto teor de gordura entremeada significa aumentar significativamente a qualidade da carne e agregar valor ao nosso produto”, avalia a diretora da DGT Brasil. Fabinho, do Nelore Golias, acrescenta: “Dizem que não se paga por marmoreio. Pergunto: isso não acontece justamente porque não temos carne marmorizada de Nelore suficiente para atender o mercado?”
Premiação já chegou – Nos últimos anos, o projeto Nelore Golias tem conseguido, com os frigoríficos parceiros, prêmios entre 5% e 15% sobre o indicador Cepea para as novilhas. Além da seleção estruturada no interior paulista, o criador tem mais quatro fazendas de recria/engorda distribuídas por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraguai, onde a genética é aplicada do berço à linha de abate. No projeto de carne, as fêmeas são submetidas à ultrassonografia de carcaça quando atingem 11@, em média, aos 20 meses. Aquelas que apresentam mais de 3,5% de marmoreio na leitura são direcionadas para o mercado gourmet. As demais são destinadas ao abate, sendo terminadas a pasto com 16-17@ aos 24-30 meses, voltadas para o mercado commodity. No grupo de novilhas superiores, o índice de marmoreio chega a 5%, com suplementação a pasto. “Trabalhar marmoreio é como trabalhar precocidade sexual: precisamos dar condições para que o animal expresse a genética. Não existe almoço de graça”, diz Fabinho.
Uma das principais críticas à seleção por marmoreio no País é a possível contaminação dos dados pelo efeito ambiente, no caso a nutrição dos animais, pois aportes energéticos podem levar à deposição de gordura intramuscular, última fase da curva de engorda. Os projetos, no entanto, refutam esse argumento. Os irmãos Marcelo e Antônio Grisi, por exemplo, da Fazenda Santa Nice, dizem ter identificado animais com alto grau de marmoreio em idade precoce (14-16 meses), antes que depositassem gordura subcutânea, e outros com três desvios-padrão para acabamento em relação ao grupo contemporâneo, sem presença de marmoreio. “A única correlação verdadeira entre as duas características é que, uma vez que o animal deposite gordura, tem-se maior segurança de que ele consumiu energia suficiente para formar marmoreio, caso tenha genética para isso. Marmoreio é uma característica do indivíduo”, diz Antônio Grisi, o Tonico.
Com sede em Amaporã, PR, a fazenda investe em pasto rotacionado, porém não arraçoa os animais. “Nosso investimento maior sempre foi em qualidade de pasto, não em trato. Não existe animal na fazenda que coma mais do que 1 grama de suplemento por quilo de peso vivo. Não trabalhamos com creep feeding, a não ser no lote de superprecoces. Fazemos marmoreio a pasto e temos conseguido fechar a conta”, garante o selecionador, que, diferentemente de Fábio Almeida, não pretende criar uma marca de carne. Seu interesse está na distribuição de genética para qualidade de carne no mercado.
Na propriedade, todos os animais são submetidos a exame de ultrassom ao sobreano e os dados obtidos são enviados para os programas de melhoramento para geração de DEPs. Os irmãos Grisi buscam não apenas marmoreio, mas também ganho de peso, melhor rendimento de carcaça e velocidade de terminação. “Vejo o mercado como um todo. Marmoreio é vantajoso? Sim. É o bônus de uma seleção bem trabalhada”, diz Tonico. No início do projeto, a fazenda tinha 15% de fêmeas de 14-16 meses com marmoreio acima de 3%. Na última safra, de um total de 1.400 novilhas, 52% atingiram esse índice. “Se o mercado vai pagar ou não por marmoreio é uma outra questão. O fato é que existe uma tendência por qualidade de carne como nunca vimos na pecuária de corte. Colherá os frutos quem sair antes à frente.”
A passos largos – No Leilão Nelore para Marmoreio, que reúne os criadores que utilizam os serviços de avaliação da DGT Brasil, a média de preço dos touros ultrapassou R$ 10.000 nos últimos dois anos, com espaço para lances de até R$ 55.200. Um mercado que começa a chamar a atenção das centrais de inseminação. Durante a ExpoGenética, em Uberaba, MG, a Semex fechou o contrato com os três touros da Fazenda Sucuri, de Humberto Tavares, que há três anos mapeou todo o seu plantel de fêmeas com foco na identificação de animais superiores em carcaça e marmoreio. O melhor índice combinado foi o de Astreu, touro de 22 meses, e grau de marmoreio de 3,27 ao sobreano. “Há demanda do mercado por esse tipo de genética. A prova está aí”, diz Tavares. Além da Semex, a CRI Genética tem trabalhado com um portfólio de nove touros voltados para essa característica. “Agora que descobrimos essa virtude em determinadas linhagens é preciso fazer um amplo trabalho de capilarização desta genética”, aponta Shiro Nishimura, titular da Fazenda Araponga, em Jaciara, MT, que faz parte do Grupo DGT na bandeira pelo “Nelore marmorizado”.
Na Fazenda Araponga, o trabalho tem sido desenvolvido a partir do touro Ubinag Prudeindia (linhagem Nagpur), adquirido de Hiroshi Yoshio, há 28 anos. Ao participar do Geneplus/Embrapa e fazer ultrassonografia de carcaça de seus animais ao sobreano como demanda o programa, Nishimura descobriu, há quatro anos, uma concentração interessante de animais com percentual de marmoreio entre 4% e 6%, diferencial genético que ele atribui ao uso frequente do touro Ubinag no repasse da vacada. “Escolhi esse animal porque ele tem alta herdabilidade para ganho de peso. Com a surpresa sobre o marmoreio, decidi ampliar seu uso e direcionar melhor nosso trabalho”, diz Nishimura, que possui uma reserva de 600 doses de sêmen de Ubinag, além de filhos e netos do touro.
Atualmente, o criador já identificou potencial de carne marmorizada em 30% de seu plantel de 800 fêmeas, metade delas com marmoreio acima de 4%. “Utilizo nessas matrizes, em especial, touros positivos para marmoreio. Isso tem me permitido avançar de forma rápida no processo de seleção”, diz. No último mês de agosto, Nishimura promoveu o primeiro leilão de marmoreio do Mato Grosso em parceria com a grife Celeiro Carnes Especiais, do pecuarista Marco Túlio Duarte Soares, com um diferencial fundamental na conta. O evento deu origem ao projeto “Do touro ao pasto”, que pretende promover o uso de reprodutores com alto grau para marmoreio em rebanhos comerciais, por meio da bonificação de seus cruzamentos.
As novilhas (filhas dos touros comercializados no leilão) serão adquiridas pela boutique de carne de Marco Túlio a preços especiais, desde que apresentem um grau de marmoreio mínimo de 3%. “Queremos juntar as três pontas: o produtor de genética, o produtor de bezerro e o distribuidor da carne”, diz Nishimura. “Já mostramos que é possível fazer Nelore com marmoreio. Agora, precisamos organizar a cadeia de produção para tornar as coisas mais fundamentadas”, diz.
Seleção de cuidados – Embora esses projetos tenham feito um excelente trabalho visando a disseminação da genética do Nelore com marmoreio, ainda existem desafios para seleção da característica na raça. O maior deles é que as informações de ultrassonografia de carcaça sejam aliadas aos programas de melhoramento genético para compor as avaliações de cada safra, ferramenta capaz de depurar o efeito do ambiente sobre a seleção para marmoreio e algo ainda recente no País. No Geneplus, os dados de ultrassom foram inseridos nas avaliações apenas no fim de 2016. Já na ANCP, as mensurações são feitas há alguns anos, embora a população avaliada ainda seja pequena.
A herdabilidade da característica varia de 0,12% a 0,22%, respectivamente, nos dois programas, um número considerado ainda baixo para incitar investimentos na seleção massal por marmoreio. Liliane Suguisawa, no entanto, acredita que há potencial para que esse número avance, à medida que os dados forem sendo incorporados aos programas de melhoramento genético. “Nos Estados Unidos, por exemplo, a herdabilidade de marmoreio no Angus está na faixa de 60-70%”.
Para Yuri Farjalla, sócio de Fabiano Araújo na Aval Serviços Tecnológicos, empresa também especializada em ultrassonografia de carcaça, o caminho é longo. Muitas fazendas ainda utilizam a técnica apenas para medição da área de olho de lombo (AOL) e espessura de gordura subcutânea, deixando o marmoreio em segundo plano. No Sumário de Touros da ANCP, lançado recentemente, foram publicadas 15.000 aferições de marmoreio, ante 108.000 de AOL e EGS. “O criador dá preferência à avaliação de características remuneradas. O marmoreio tem espaço importante, mas o criador não faz porque, além da baixa herdabilidade baixa, tem retorno econômico discutível.”
Fabiano, por sua vez, avalia que ainda faltam no Brasil sistemas de tipificação de carcaça que garantam a devida remuneração para qualidade de carne, incluindo a gordura entremeada. O diagnóstico da eficiência de cada produtor é feito majoritariamente com base no peso da carcaça quente, sendo este o principal critério de remuneração da indústria frigorífica. “Até podemos trabalhar o marmoreio no Nelore, mas, por enquanto, apenas como nicho de mercado”, avalia o técnico. O professor Bento Ferraz, da USP, acrescenta: “Tem quem receba 10% a mais aqui, acolá. Só que é um mercado muito reduzido. O nosso negócio é carne barata e em quantidade. Não sofistica muito não.”
A Aval tem clientes com bons bancos de avaliações sobre marmoreio, mas não os utilizam para seleção, nem comercialização de seus animais. Dois exemplos são o Grupo Genética Aditiva e o Rancho da Matinha, ambos com mais de dez anos de aferições de características de carcaça. “Na verdade, é uma questão de posicionamento. A seleção por marmoreio tem o espaço dela, assim como todas as outras no País, mas deve ser bem conduzida para que haja credibilidade. Ainda tem gente passando ultrassom em vaca velha, fora de grupos contemporâneos, e isso é péssimo”, aponta Argeu Silveira, que coordenou o projeto Genética Aditiva por 30 anos e hoje é diretor técnico da ANCP (Associação Nacional dos Criadores e Pesquisadores).
O preconizado pelos técnicos é que a medida ocorra ao sobreano, etapa final da composição de grupos contemporâneos, e, idade mais indicada para seleção por marmoreio, já que animais adultos tendem a acumular gordura naturalmente. Gilberto Menezes, pesquisador da Embrapa Gado de Corte, esclarece: “Toda característica deve ser trabalhada em grupos de manejo estabelecidos. No caso do marmoreio essa necessidade se torna ainda maior, já que são muitas as varíaveis que podem regular a quantidade de gordura intramuscular depositada na carcaça”, diz. “Tudo é uma questão de equilíbrio. Tem criador forçando a característica e prejudicando a seleção para outros fins, como desempenho e produtividade, coisas que geram efeito direto na rentabilidade do negócio. A seleção deve ser antes de tudo, um pacote equilibrado de características.”
Ousadia de baixo custo – No grupo de frente dos selecionadores para marmoreio no Nelore, Mateus Arantes, da Fazenda São Matheus, de Três Lagoas, MS, tem adotado uma estratégia bastante ousada de seleção: obter animais com alto grau de gordura entremeada apenas com base na ultrassonografia de carcaça, sem uso de DEPs. Para isso, ele estipulou uma nota de corte para a seleção em 2% de marmoreio e, desde então, tem mantido no rebanho apenas animais superiores. “Cada produtor escolhe como fazer marmoreio. Eu escolhi fazer a baixo custo, sem grão e sem programa de melhoramento”, diz.
Todo rebanho é avaliado ao custo médio de R$ 20/cabeça, hoje o valor do ultrassom. São cerca de 400 fêmeas Nelore PO e 1.800 animais de recria/engorda suplementados com sal mineral, em pasto rotacionado com soja. Embora inusitado, o sistema de produção de Arantes vem obtendo bons resultados. Em 2016, das 112 fêmeas Nelore inseminadas entre 12 e 14 meses, 52 emprenharam e deram grau de marmoreio entre 5,8 e 9,8, que podem ser classificados, respectivamente, como Choice e Choice +. “Essa é uma característica importante, que deve estar presente no rebanho brasileiro. Não precisa ser Prime (altamente superior), mas não pode ser Standard (inferior). A partir do momento em que o Nelore produzir uma carne de melhor qualidade, haverá também demanda para ela. Temos que acabar com essa história do que vem primeiro: o ovo ou a galinha.”
*Matéria originalmente publicada na edição 443 da Revista DBO.